DUAS OU TRêS COISAS SOBRE O POEMA/PROCESSO
Moacy Cirne[1968]A poesia não poderia ficar presa ao jogo fácil das
palavras, que puxam palavras – associações paranomásticas que não mais
funcionam -, nem a falsa engenharia estrutural / que termina na mais
pura esterilidade. A crise da poesia é simplesmente a crise da palavra
(no poema). No primeiro caso, não percamos tempo com Drummond e os
praxistas. Quanto a Cabral – que, algumas vezes, apenas aprimorou o
procedimento drummondiano, passando por Murilo Mendes, Bandeira,
Mallarmé e Valéry -, podemos divisar em sua obra, isto sim, uma
engenharia formal, consubstanciada ora numa semanticidade progressiva
(O Cão Sem Plumas)
1,
ora numa concretude sígnica (Uma Faca só Lâmina), resultando- /
culminando em simples permutação estrófico-vocabular: A Educação Pela
Pedra. Não devemos confundir secura e precisão semânticas – na área da
forma -  com secura e precisão formais – na área da estrutura.
De
certo que para nos – politicamente dominados por uma ditadura fascista
a serviço / do imperialismo internacional – não se trata de discussões
bizantinas em torno de problemas menores. Mas, para que possamos
construir uma arte radical e revolucionaria – a única que
verdadeiramente corresponde à teoria marxista-leninista e ao atual
momento político-social brasileiro – certas questões teóricas, na
própria área da arte, precisam ser esclarecidas. Levantadas tais
questões, partir para a pratica revolucionária, na arte e na política,
e “pela prática descobrir as verdades, e ainda pela prática confirmar
as verdades e desenvolve-las”... (Mão Tse-tung, A propôs de la
pratique, Paris/Petit collection maspero, 1967).
Por que o
poema/processo não é domínio das artes plásticas, embora esteja
realmente / bem próximo? Além da voltagem semântica que caracteriza
quase todos os nossos poemas um problema mais importante se apresenta:
as direções de leitura. Nas artes plásticas lemos a estrutura (leitura
abstrata), que, por mais dinâmica que possa ser, encerra sempre uma
rigidez operatória. Qualquer elemento / de composição – mesmo um espaço
vazio ou morto – é agente estrutural: cores e formas específicas
permanecem cores e formas específicas, não permitindo transformações
(opções) operatórias. No poema/processo lemos o processo (leitura
criativa)
2.
O desencadeamento das estruturas permite várias leituras, a partir de
um ponto dado, inicial ou não. Para apreender o global, depois de um
primeiro contato com a obra, e conforme o poema, são necessárias várias
leituras (simultâneas ou não) de suas diversas estruturas. E no
poema/processo o espaço vazio, ou morto, não é agente estrutural – não
precisa ser lido. Mesmo as cores e formas permitem opções (versões) do
consumidor/participante. Porque no poema/processo a funcionalidade
informacional é mais importante do que a funcionalidade estética.
Esclareçamos
com alguns exemplos, extraídos de Ponto 1. O poema “signo”, de Dailor
Varela, apresenta 5 estruturas circulares, numa programação topológica
(Max Bense), situadas verticalmente na margem esquerda da página. Mais
da metade da página é ocupada por um enorme espaço branco (espaço
morto). Pois bem: as estruturas poderiam ser retangulares,
triangulares, etc; poderiam estar na margem direita, ou no centro. O
espaço restante poderia ser vermelho, azul, verde ou amarelo; poderia
mesmo ser suprimido (como, em parte, o foi no Jornal do Brasil...
13/12/67), e no Correio Braziliense, 13/04/68). Naturalmente, existe
uma funcionalidade estética em sua apresentação original, mas é na
funcionalidade informacional (as estruturas circulares) que reside o
processo do poema. O “usina”, de Álvaro de Sá, substitui na revista o
elemento cor por retículas: a funcionalidade estética mudou, todavia a
funcionalidade informacional permanece a mesma. Os poemas-código de
Neide Dias de Sá refletem a complexa problemática através da leitura
criativa do processo: no 1º domina a integração dos elementos
compositivos, forçando uma reavaliação no próprio código; no 5º a
colocação (circular) das estruturas anula paulatinamente a codificação
proposta, enquanto o movimento (giratório) da página, pelo
consumidor/participante, revela novas situações codificadoras.
Porém,
é em relação a outros problemas (versões/projetos) que o poema/processo
mostra ser a verdadeira arte radical e revolucionaria dos nossos dias,
pois – em última análise – considerá-lo poesia ou não, combate-lo
porque seria pouco ou quase nada “literário”, só vai preocupar aos
eternos defensores das estruturas vigentes – os que temem o novo assim
como temem as idéias vivas de um Guevara. Certos postulados precisam
ser colocados:
1 – Através da versão o poema/processo torna-se
socializante, em termos de arte. A partir de uma dada matriz (processo)
todo consumidor/participante tem a inteira liberdade de criar novas e
diferentes versões, de acordo com o seu gosto pessoal. Exploração
racional das possibilidades encerradas no processo. Na Argentina uma
versão do “1822”, de Nei Leandro, seria o “1816”. Construir versões
materiais. Contra o poema único.
2 – Através do projeto o
poema/processo torna-se socializável, em termos de arte. Para superar
dificuldades materiais e/ou financeiras publique-se o projeto do poema,
que terá a mesma importância informacional, do poema fabricado. O
projeto deverá ser claro e preciso, e sendo projeto de um processo
permitirá ao consumidor/participante escolher sua versão particular.
Contra o objeto único, o projeto não se destina aos poemas gráficos,
que, em si, já são projetos de versões materiais. (Vide, neste nº da
revista, o projeto do poema “A 3ª Mundial”, de Nei Leandro.)
Nossas restrições à “Operação/poema”, de Sanderson Negreiros (vide também neste nº), prendem-se aos seguintes pontos:
“O
poeta projetará sempre – diz ele -, os outros realizem o poema ou ajam
como quiserem, pois só assim haverá realmente “processo”. O poema único
dentro de pouco tempo vira peça de museu”. Ao nosso ver, o poeta só
projetará – no sentido empregado por Sanderson – no caso específico de
objetos-poema, para superar as dificuldades acima mencionadas e contra
o objeto único, de origem burguesa e anterior ao desenvolvimento
industrial. Os poemas gráficos (ou projetos gráficos) – poemas para
revistas, jornais, livros – continuarão sendo feitos. Em outro item,
Sanderson Negreiros afirma: “Primeiramente, sugerimos nossos”projetos”.
Que poderão ser três, dez ou dois mil”. O poeta deverá publicar seu(s)
projeto(s): o consumidor/participante fará sua versão, ou versões, de
um ou mais projetos. Mas sempre a partir de um dado claro, concreto,
objetivo, e nunca de uma simples “sugestão”. E de um projeto que seja
projeto de um processo.
De certo, Sanderson Negreiros amplia a
faixa dos poetas: todo consumidor/participante seria também um poeta
(“A “operação/poema” tem a vantagem de: ficando o
consumidor/participante inteiramente certificado de ter entendido o
“projeto”, realizara não só os indicados agora, diminutamente, mas fará
outros tantos “projetos”, que quiser para os realizar em cadeia até
reduzi-los a novas concepções e/ou destruições”), mas a operação ainda
não está bem definida. Seria preciso que o consumidor/participante não
entendesse apenas o(s) projeto(s), porém a própria idéia de processo,
para que realizasse poemas (gráficos)/processo e projetos de
poemas(objetos)/processo. A importância da “operação/poema”, contudo, é
inegável.
Não se pense, por outro lado, já que antes falamos em
“socializante” e “socializável” em termos de arte, que o poema/processo
não interfira nos campos político e social
3.
Seria uma contradição ideológica. Sempre que necessário denunciamos a
engrenagem capitalista que nos envolve. Mas, quando a fazemos através
da poesia, denunciamos ao nível da linguagem. Somente assim poderemos
construir uma arte revolucionária.
1
Sobre o Cão Sem Plumas, o crítico Luiz C. Lima fala em “processo de
vaivem, progressivo-regressivo” (A Traição Conseqüente ou a Poesia de
Cabral, in Lira e Antilira – Civilização Brasileira, 1968, p. 311.)
2
Usamos aqui a terminologia de Wlademir D. Pino: leitura simbólica para
o figurativo, leitura abstrata para a estrutura, leitura criativa para
o processo.
3
V. Álvaro de Sá, Por que medo da vanguarda?: O poema/processo
“denuncia, por seus processos revolucionárias -, não fugindo de temas
políticos, quando assim o entendem os artistas - , não é “profiteur” de
um público pequeno-burguês que se diz de esquerda ao mesmo tempo que
discute inerme em suas poltronas.”
Revista Ponto 2, Rio de Janeiro, Ponto, 1968.