DUAS OU TRêS COISAS SOBRE O POEMA/PROCESSO
Moacy Cirne[1968]


Muitos têm insistido em situar o poema/processo na área das artes plásticas. Certamente – e a última fase da poesia concreta já o mostrara – cada vez mais nos afastamos da literatura. Mais do que isso: os nossos críticos ainda não perceberam que a literatura por excelência do século XX é a estória-em-quadrinhos. Consultando “Lês chefs-d”oeuvre de l abande dessinée” (Éditions Planète,... 1967) verificamos a importância criativa de um Gennaux, de um Rubino, de um Schulz, de um Soglow, de um Forlanim de um Raymond, de um Silas, de um Rosy, de um Hachel. Sem falar em Al Capp. Noutra esfera, “O Homem ao Zero” (Ed. Expressão e Cultura, 1968) – de Leon Eliachar -, apesar da excessiva palavrosidade em muitos capítulos, contem mais informação estética do que qualquer romance nacional publicado nos últimos dez anos.

A poesia não poderia ficar presa ao jogo fácil das palavras, que puxam palavras – associações paranomásticas que não mais funcionam -, nem a falsa engenharia estrutural / que termina na mais pura esterilidade. A crise da poesia é simplesmente a crise da palavra (no poema). No primeiro caso, não percamos tempo com Drummond e os praxistas. Quanto a Cabral – que, algumas vezes, apenas aprimorou o procedimento drummondiano, passando por Murilo Mendes, Bandeira, Mallarmé e Valéry -, podemos divisar em sua obra, isto sim, uma engenharia formal, consubstanciada ora numa semanticidade progressiva (O Cão Sem Plumas)1, ora numa concretude sígnica (Uma Faca só Lâmina), resultando- / culminando em simples permutação estrófico-vocabular: A Educação Pela Pedra. Não devemos confundir secura e precisão semânticas – na área da forma -  com secura e precisão formais – na área da estrutura.

De certo que para nos – politicamente dominados por uma ditadura fascista a serviço / do imperialismo internacional – não se trata de discussões bizantinas em torno de problemas menores. Mas, para que possamos construir uma arte radical e revolucionaria – a única que verdadeiramente corresponde à teoria marxista-leninista e ao atual momento político-social brasileiro – certas questões teóricas, na própria área da arte, precisam ser esclarecidas. Levantadas tais questões, partir para a pratica revolucionária, na arte e na política, e “pela prática descobrir as verdades, e ainda pela prática confirmar as verdades e desenvolve-las”... (Mão Tse-tung, A propôs de la pratique, Paris/Petit collection maspero, 1967).

Por que o poema/processo não é domínio das artes plásticas, embora esteja realmente / bem próximo? Além da voltagem semântica que caracteriza quase todos os nossos poemas um problema mais importante se apresenta: as direções de leitura. Nas artes plásticas lemos a estrutura (leitura abstrata), que, por mais dinâmica que possa ser, encerra sempre uma rigidez operatória. Qualquer elemento / de composição – mesmo um espaço vazio ou morto – é agente estrutural: cores e formas específicas permanecem cores e formas específicas, não permitindo transformações (opções) operatórias. No poema/processo lemos o processo (leitura criativa)2. O desencadeamento das estruturas permite várias leituras, a partir de um ponto dado, inicial ou não. Para apreender o global, depois de um primeiro contato com a obra, e conforme o poema, são necessárias várias leituras (simultâneas ou não) de suas diversas estruturas. E no poema/processo o espaço vazio, ou morto, não é agente estrutural – não precisa ser lido. Mesmo as cores e formas permitem opções (versões) do consumidor/participante. Porque no poema/processo a funcionalidade informacional é mais importante do que a funcionalidade estética.

Esclareçamos com alguns exemplos, extraídos de Ponto 1. O poema “signo”, de Dailor Varela, apresenta 5 estruturas circulares, numa programação topológica (Max Bense), situadas verticalmente na margem esquerda da página. Mais da metade da página é ocupada por um enorme espaço branco (espaço morto). Pois bem: as estruturas poderiam ser retangulares, triangulares, etc; poderiam estar na margem direita, ou no centro. O espaço restante poderia ser vermelho, azul, verde ou amarelo; poderia mesmo ser suprimido (como, em parte, o foi no Jornal do Brasil... 13/12/67), e no Correio Braziliense, 13/04/68). Naturalmente, existe uma funcionalidade estética em sua apresentação original, mas é na funcionalidade informacional (as estruturas circulares) que reside o processo do poema. O “usina”, de Álvaro de Sá, substitui na revista o elemento cor por retículas: a funcionalidade estética mudou, todavia a funcionalidade informacional permanece a mesma. Os poemas-código de Neide Dias de Sá refletem a complexa problemática através da leitura criativa do processo: no 1º domina a integração dos elementos compositivos, forçando uma reavaliação no próprio código; no 5º a colocação (circular) das estruturas anula paulatinamente a codificação proposta, enquanto o movimento (giratório) da página, pelo consumidor/participante, revela novas situações codificadoras.

Porém, é em relação a outros problemas (versões/projetos) que o poema/processo mostra ser a verdadeira arte radical e revolucionaria dos nossos dias, pois – em última análise – considerá-lo poesia ou não, combate-lo porque seria pouco ou quase nada “literário”, só vai preocupar aos eternos defensores das estruturas vigentes – os que temem o novo assim como temem as idéias vivas de um Guevara. Certos postulados precisam ser colocados:

1 – Através da versão o poema/processo torna-se socializante, em termos de arte. A partir de uma dada matriz (processo) todo consumidor/participante tem a inteira liberdade de criar novas e diferentes versões, de acordo com o seu gosto pessoal. Exploração racional das possibilidades encerradas no processo. Na Argentina uma versão do “1822”, de Nei Leandro, seria o “1816”. Construir versões materiais. Contra o poema único.

2 – Através do projeto o poema/processo torna-se socializável, em termos de arte. Para superar dificuldades materiais e/ou financeiras publique-se o projeto do poema, que terá a mesma importância informacional, do poema fabricado. O projeto deverá ser claro e preciso, e sendo projeto de um processo permitirá ao consumidor/participante escolher sua versão particular. Contra o objeto único, o projeto não se destina aos poemas gráficos, que, em si, já são projetos de versões materiais. (Vide, neste nº da revista, o projeto do poema “A 3ª Mundial”, de Nei Leandro.)

Nossas restrições à “Operação/poema”, de Sanderson Negreiros (vide também neste nº), prendem-se aos seguintes pontos:
“O poeta projetará sempre – diz ele -, os outros realizem o poema ou ajam como quiserem, pois só assim haverá realmente “processo”. O poema único dentro de pouco tempo vira peça de museu”. Ao nosso ver, o poeta só projetará – no sentido empregado por Sanderson – no caso específico de objetos-poema, para superar as dificuldades acima mencionadas e contra o objeto único, de origem burguesa e anterior ao desenvolvimento industrial. Os poemas gráficos (ou projetos gráficos) – poemas para revistas, jornais, livros – continuarão sendo feitos. Em outro item, Sanderson Negreiros afirma: “Primeiramente, sugerimos nossos”projetos”. Que poderão ser três, dez ou dois mil”. O poeta deverá publicar seu(s) projeto(s): o consumidor/participante fará sua versão, ou versões, de um ou mais projetos. Mas sempre a partir de um dado claro, concreto, objetivo, e nunca de uma simples “sugestão”. E de um projeto que seja projeto de um processo.

De certo, Sanderson Negreiros amplia a faixa dos poetas: todo consumidor/participante seria também um poeta (“A “operação/poema” tem a vantagem de: ficando o consumidor/participante inteiramente certificado de ter entendido o “projeto”, realizara não só os indicados agora, diminutamente, mas fará outros tantos “projetos”, que quiser para os realizar em cadeia até reduzi-los a novas concepções e/ou destruições”), mas a operação ainda não está bem definida. Seria preciso que o consumidor/participante não entendesse apenas o(s) projeto(s), porém a própria idéia de processo, para que realizasse poemas (gráficos)/processo e projetos de poemas(objetos)/processo. A importância da “operação/poema”, contudo, é inegável.

Não se pense, por outro lado, já que antes falamos em “socializante” e “socializável” em termos de arte, que o poema/processo não interfira nos campos político e social3. Seria uma contradição ideológica. Sempre que necessário denunciamos a engrenagem capitalista que nos envolve. Mas, quando a fazemos através da poesia, denunciamos ao nível da linguagem. Somente assim poderemos construir uma arte revolucionária.

1 Sobre o Cão Sem Plumas, o crítico Luiz C. Lima fala em “processo de vaivem, progressivo-regressivo” (A Traição Conseqüente ou a Poesia de Cabral, in Lira e Antilira – Civilização Brasileira, 1968, p. 311.)
2 Usamos aqui a terminologia de Wlademir D. Pino: leitura simbólica para o figurativo, leitura abstrata para a estrutura, leitura criativa para o processo.
3 V. Álvaro de Sá, Por que medo da vanguarda?: O poema/processo “denuncia, por seus processos revolucionárias -, não fugindo de temas políticos, quando assim o entendem os artistas - , não é “profiteur” de um público pequeno-burguês que se diz de esquerda ao mesmo tempo que discute inerme em suas poltronas.”


Revista Ponto 2, Rio de Janeiro, Ponto, 1968.