POR QUE MEDO DA VANGUARDA?
Álvaro de Sá[1968]


O problema do realismo é fundamental para a vanguarda, artistas de fato preocupados em produzir uma arte capaz de estabelecer novos níveis de comunicação com os consumidores e aumentar-lhes o repertorio, através de maior informação. E por isto mesmo, não pode o artista aprisionar-se numa estreiteza conceitual que lhe venha dificultar a pratica artística e tolher a criação. Se a arte é uma forma de conhecimento do homem, há que entender que o “conhecimento é um processo complexo de produção de conhecimentos” (L. Althusser), e que, como as verdade cientificas, as verdades artísticas são “sempre paradoxais, quando a submetemos ao controle da experiência quotidiana, que apreende somente a aparência enganosa das coisas” (Marx).

Realismo em arte é o conhecimento da realidade vivida pelo artista, e a informação adequada deste conhecimento por meio de seu produto. Mas, “conhecer não é extrair das impurezas e das diversidades do real a essência pura que estaria contida no real; conhecer é produzir o conceito adequado do objeto, pela aplicação de meios de produção teórica (teoria e método) a uma dada matéria prima... é uma pratica específica” (L. Althusser). Realismo, portanto, não é copiar ou interpretar a realidade a partir de sua aparência, o mais fielmente possível – este naturalismo é “esquerdista” na medida que entende o conhecimento como espontaneamente gerado dentro de uma sociedade, fora de uma prática intelectual específica. E aqui o conceito de aparência não se restringe somente aos aspectos sensoriais apresentados pela realidade, mas também às aparências sociais, econômicas, ideológicas, concretas ou abstratas.

A propaganda hoje utiliza-se do naturalismo e de outros meios para seduzir e massificar. Torna-se importante ate lutar contra o naturalismo, fragmentar essa propaganda, numa tentativa de emancipar o homem de sua influência, de proporcionar-lhe um espírito analítico de modo que ele possa, a partir dos fragmentos, compor uma nova realidade ou, no mínimo, conhecer melhor aquela da qual faz parte. Nenhum objeto “lingüístico”, por mais completo que pretenda ser, engloba a totalidade do real: esta tentativa é idealista.

O realismo existe em função de um sujeito, o homem, capaz de perceber a realidade e modificá-la através do conjunto de atividades conscientes que criam as condições indispensáveis à existência da sociedade, i.é., a prática. Ele está ligado em cada sociedade à prática do homem, em particular à prática artística específica, existindo somente a partir da obra de arte, inserida indissoluvelmente nesta sociedade – pois só assim o objeto artístico é uma expressão efetiva do conhecimento. O realismo não existe em termos abstratos, sem ideologia – a sua concreção é a resposta que o artista encontra para ampliar o conhecimento do real, suas possibilidades mesmas de modificá-lo, dentro de sua concepção filosófica e sobretudo comunicar esta resposta. Porque cabe sempre perguntar a favor de quem está tal ou qual realismo, já que nada pode ser julgado pelo que diz que é, mas pelo que realmente é – um objeto artístico afirmando “viva o novo” pode ser velho, surrado, pode estar até fazendo a apologia do velho.

Não é realismo nas condições atuais o artista utilizar-se do objeto que ele cria para veicular temas revolucionários, inseridos em velhas linguagens; esta atitude é empirista e ignora a interrelação dialética entre as diversas faces da obra de arte (signos, código, veículo, etc.) ao mesmo tempo que substitui a prática artística por uma prática social geral. “O homem... não está em frente das coisas, mas dentro” e “se eu quiser informar-me do acontecimento, o historiador mais medíocre satisfará melhor ao meu interesse do que o mais genial pintor” (R. Garaudy), pois “o poeta não é obrigado a dar pronta ao leitor a solução histórica futura dos conflitos sociais que descreve” (Engles). Um poeta, por exemplo, que não pesquisa radicalmente dentro das linguagens e que se contenta em manusear os instrumentos utilizados há séculos, é um milagreiro, um feiticeiro que está procurando por um passe qualquer fazer o velho vencer o novo, a poesia vencer o poema-processo. Se um poeta se enquista dentro de uma temática social, usando velhas linguagens, na busca do sucesso fácil, sem dúvidas ele o consegue, mas afirmando uma estrutura vigente e um consumo condicionado, procurando atingir o público sem tentar desaliená-lo – que avanço podem trazer metáforas religiosas como “mulher de nuvens” ou “podemos formar uma muralha com nossos corpos de sonhos e margaridas” (Ferreira Gullar) e que realismo constituem? Tais formulações contém um “realismo” aristotélico/mágico/religioso, acertado dentro das normas sancionadas pela crítica burguesa, para um público condicionado em tal repertório, um livro cuja reprodução não é permitida (um copyright) – muito burguês! -, com significado social catastrófico, numa alegoria de homem comum dentro de quem a “vida sopra pânica” etc. Pode ser um “realismo” – mas não do lado que nos pretendemos situar, lado da razão, da comunicação, da denúncia de mitos mágicos, da modificação da realidade pela atividade do homem. Até contra este lado.

Cabe ao realismo uma resposta à necessidade de seu tempo e de seu espaço, aceitando todos os desafios que se apresentem, e procurando conhece-los no sentido de uma nova visão, sejam os fenômenos desafiantes técnicos, sociais, individuais ou de qualquer natureza. Porque se o artista se protege dentro do que se convencionou autenticar como o bom, o belo ou o normal, então ele parou – ele está fazendo a arte da decadência, ele é a reação ao novo, o reacionário. #capa#

A arte conhece e educa enquanto arte, com os próprios meios da arte, dentro da prática artística – quando se propõe finalidades didáticas, empobrece-se. Se entendemos que ela auxilia o desenvolvimentos dos sentidos humanos (tomada aqui a expressão em toda amplitude) através dos tempos e que o mais interessante objeto artístico só existe como tal para quem é capaz de percebe-lo, isto é, com repertorio adequado – umas das finalidades da arte realista é dilatar continuamente os limites destes sentidos, pois isto lhe é específico – ela e somente ela poderá fazê-lo – “criar um público capaz de usufruí-la. A arte produz não só um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto” (Marx). Ela precisa criar uma “lógica de consumo” (Wlademir Dias Pino), “fundando novas probabilidades criativas” (Moacy Cirne).

Quais seriam então as características de um realismo de vanguarda, atualmente no Brasil (pois, fora de dúvidas, terá características diferentes em outros lugares)?
Hoje, no Brasil, as condições de trabalho alienado existem em escala nacional e internacional, de tal modo que o homem médio brasileiro atinge graus impressionantes de alienação que oscilam entre a não consciência social, o analfabetismo, a passividade, o consumo de idéias e produtos antinacionais, etc; há uma necessidade de afirmação da nacionalidade no conceito internacional para as classes progressistas do país – umas por questões de desenvolvimento e outras por questões de fortalecimento e conscientização, a informação chega a todos os veículos dirigida e manietada pelas agências de notícias nem sempre atendendo à justeza desejada; o país no plano interno atravessa a premência de uma normalização democrática e os artistas, em particular, a premência da abolição da censura. O homem hoje, aqui no Brasil, precisa fundamentalmente afirmar a sua individualidade universal de brasileiro cidadão do mundo, protegido pela ONU. Mas a situação social existe em uma aparência que, por sua tremenda hostilidade, não pode ser copiada ou interpretada de modo naturalista em que isto se constitua em seu próprio elogio. No caso dos poetas, criadores de novos valores nas linguagens, acresce o não reconhecimento de sua atividade como profissão, a despeito de ser antiga e do indiscutível valor social da mesma: atingido diretamente pelo bloqueio das editoras interessadas nos “sucessos” alienantes e alienígenos de vendas, ele tem que lutar pela modificação de suas próprias condições de trabalho.

Em nenhum momento o artista pode achar que nem país inculto e com grande quantidade de analfabetos a sua obra será capaz de revolucionar a realidade social – isto é, que um dado poema seu seja capaz de desencadear a mudança das estruturas sociais. E nem que fosse um país culto: o que realmente modifica estas estruturas é a ação de uma coletividade como classe consciente. Tentando dinamizar as estruturas vigentes, que lhe dificultam ou impossibilitam a sua atividade artística, ele tem que compreender com humildade a sua pequenês dentro da sociedade e fustigar o “status quo” naquilo que ele lhe atinge, porque qualquer mudança efetiva precisa de acúmulos quantitativos, pequenos e anônimos. A posição realista e madura é que como homem o artista se insere e luta na totalidade social, mas na sua atividade artística a luta desenvolve-se em torno dela. Os mais radicais e “participantes” poetas deste país até hoje não iniciaram uma luta pelo sindicato dos poetas, pela transformação de sua atividade em uma profissão.

O que o artista tem que perceber de revolucionário em sua atividade é a ampliação de conhecimentos do real que ela pode trazer, no seu campo especifico, dentro da especificidade artística, conhecimento este que só pode ser desenvolvido a partir dela.

E dito tudo isto, é preciso esclarecer o realismo existente no poema-processo.

O poema-processo caracteriza-se por trazer em si a dinamização mesma de sua estrutura, através das possibilidades criativas que ele funda e que proporcionam a sua mutabilidade exploratória. Ele desencadeia-se, deixando à mostra as suas condições de auto-superação: o gasto pela exploração direta do consumidor e superação dialética decorrente do desenvolvimento geral da arte, desenvolvimento este que ele acelera, pois se torna, devido à sua funcionalidade, o fundamento de sua própria superação. Assim o poema-processo é um inaugurador de novas linguagens ou um modificador radical de linguagens existentes.

Ao inaugurar novas linguagens, aos níveis nacional e internacional, ele responde ativamente pela necessidade da individualização universal do brasileiro cidadão do mundo, ao mesmo tempo que, atingindo profundamente as linguagens existentes, veiculadoras da ideologia dominante e auxiliares eficazes na massificação e alienação do homem brasileiro, coloca-se em questão, tirando o seu caráter imutável e sagrado.

A contínua mobilidade do real, com a sua sucessão não repetitiva, é “referida” em cada novo processo. Com isso ele cria novas possibilidades de enfoque do real, na medida em que cada linguagem é um “referente” deste e de suas correlações. Explorando o processo dispõe o consumidor de uma nova infinidade de meios para pesquisar e compreender a realidade. Assim dessacraliza-se e democratiza-se o objeto “lingüístico”, que solicita este consumidor-participante-criativo, que é forçado, pela própria natureza do objeto, a tocá-lo, manuseá-lo, recriá-lo, colocando-se ao nível do artista e participando, pela exploração e recriação dentro do processo, das probabilidades inseridas no objeto “lingüístico”. Qualquer outra participação discursiva ou lúdica permutatória coloca-o passivo, do lado de fora do acontecimento e dentro de uma posição alienada.

Acaba com o objeto único, inaceitável para uma sociedade democrática, estabelecendo o consumo imediato como antinobreza. E isto é muito importante em uma sociedade de donos e muito importante em uma sociedade de donos e patrões que cada vez mais afirmam a sua posição, conforme possuam tal ou qual objeto único de um artista sancionado (qualquer que seja a posição política deste artista ou o tema de seu trabalho). Mas ao mesmo tempo evita a demagogia da repetição de um dado original (como a gravura, por exemplo), pois decorrendo de sua exploração há sempre objetos novos, com estruturas diferentes, constituindo-se cada um deles uma versão do processo e cada um deles um individual dentro de uma série.

Utiliza os meios de comunicação de massa e age sobre eles despindo-lhes a aparência – o jornal é recortado e colado, o cinema é explorado (filmes-poemas), é trabalhada a linguagem da história-em-quadrinhos: são enfrentadas criativamente estas realidades de nosso dia a dia.

Por sua constante movimentação das estruturas estabelece o hábito de “leitura” destas e também o do consumo de processos, colocando a descoberto as imobilidades estruturais e ao mesmo tempo, com subsídios fornecidos pela mobilidade do real, a necessidade constante do desencadeamento de novos processos.

Incorpora a técnica com suas facilidades e responsabilidade, utiliza a luz como elemento gráfico, a eletricidade para trazer movimentação e para outros recursos, o raio laser como ferramenta de trabalho, a eletrônica, a cibernética, etc.

Denuncia, por seus processos revolucionários as necessidades revolucionárias – não fugindo de temas políticos, quando assim o entendem os artistas -, não é “profiteur” de um público pequeno-burguês que se diz de esquerda ao mesmo tempo que discute inerme em sua poltronas.

A sua própria realidade é contra o copyright, pois proporcionando diferentes versões de igual valor impede que o autor se torne o mandatário e senhor da obra: esta passa à propriedade social. Por este caráter democrático pré-figura condições que se desenvolverão plenamente no “reino da liberdade”.
Assim é o poema-processo, realidade-realista de 1968.


Revista Ponto 2, Rio de Janeiro, Ponto, 1968.